Como terá sido contada a primeira história? Impossível dizer, mas podemos fazer algumas suposições seguras sobre local e tópico: ao redor de uma refeição compartilhada, sobre como o nosso mais urgente imperativo biológico foi atendido naquele dia. Para todos os animais, o alimento é ao mesmo tempo o objetivo para acordar todos os dias (ou noites) e o combustível para manter todos os processos metabólicos necessários para viver. Para os seres humanos, a comida cedo deve ter se tornado foco de conversas, de ansiedades, de êxtases e, por fim, do nosso imaginário.
A natureza não veio com manual de instruções ou livro de receitas: nem sempre foi possível antecipar o que era seguro consumir para manter a energia e a saúde, nem quais frutas, folhas, sementes e cogumelos eram perigosos. Houve um tempo, certamente, em que cada refeição carregava grande risco de morte, devido a uma compreensão ainda muito incipiente do espaço natural. Como passar para as futuras gerações a importância dos processos já estabelecidos para garantir a segurança de todos, como as plantas que podiam ser consumidas e os animais que não ofereciam perigo? Com cantos e cultos, com desenhos e pinturas, com brincadeiras e rituais – e, inevitavelmente, com as histórias passadas dos mais velhos aos mais jovens, que ensinavam a entender o mundo de acordo com os conhecimentos construídos socialmente e organizado por meio do imaginário de cada grupo, incluindo os hábitos alimentares, determinantes para a sobrevivência de todos.
O ato de comer sempre exigiu esforços da imaginação: selecionar o solo, moldar o recipiente de barro, construir o instrumento de corte da carne, definir a rota da caçada, preparar a armadilha, acender o fogo, delegar a divisão de tarefas. O pensamento criativo, assim, pode ter sido catalisador da nossa habilidade de explorar os potenciais dos alimentos, tanto para multiplicá-los e modificá-los como para transformá-los em arte na forma de ilustrações ou de histórias e, assim, perpetuar a nossa relação íntima e afetiva com a comida.
A expressão artística, inclusive, em muito precede a agricultura: mais de vinte mil anos separam as evidências arqueológicas desses marcos evolutivos que fazem parte da história particular da nossa espécie. Para as histórias orais, naturalmente, não há fósseis nem restos mortais, mas sobraram as adaptações. Mitos como o fruto da imortalidade de Gilgamesh e o roubo do fogo por Prometeu têm pares por todo o mundo, trabalhando em cada grupo ansiedades que sem dúvida acompanham a humanidade desde os nossos primórdios – como entender que a comida guarda a vida e a morte, a saúde e a doença, a extinção ou a sobrevivência. Por meio da arte e da reprodução de histórias, nossa espécie aos poucos foi mapeando seu lugar no mundo e sua relação com ele – desde início, ao que tudo indica, tendo a comida e os alimentos como fontes de inspiração e protagonismo.
É possível, então, sugerir uma leitura da nossa relação com a comida como estreitamente ligada à história da ficção, da criação artística — da tentativa de reproduzir o que não existe nesta forma física ainda. A mandioca, por exemplo, foi privilegiada no território da atual América do Sul graças à versatilidade de suas aplicações, pois podemos consumi-la cozida, frita, num pão de queijo (feito de polvilho), na farofa (feita da farinha), no tucupi, no sagu, no chá de boba, na tapioca, numa lista impossível de concluir. O milho, similarmente, pode ser comido puro em diversas formas ou como parte de bolos, tortilhas, pamonha, curau, polenta, mingau, farofa, entre tantos outros. A primeira ferramenta de cultivo dessas comidas foi a imaginação: a habilidade de enxergar antes da natureza efetivamente tornar tangível. E cada um desses alimentos, naturalmente, carrega histórias de famílias, cidades, nações, tempos – eles carregam os ensinamentos que permitiram que hoje estejamos consumindo raízes e grãos domados pela primeira vez há mais de quinze mil anos.
Não por acaso, tanto a mandioca como o milho são sagrados em diversas culturas indígenas: esses saberes são contemporâneos à descida dos primeiros humanos no continente, que traçaram desde a hoje submersa região da Beríngia e pelo caminho foram domando essas plantas. Grupos por todo o mundo encontraram em seus principais alimentos, além da energia necessária para alimentar o desenvolvimento neurológico próprio dos Homo sapiens (um cérebro grande e pesado que consome muitos carboidratos), a inspiração para mitos, cultos e representações simbólicas de gratidão e admiração.
Pelas mais variadas religiões e crenças, estão deuses, santos, espíritos, forças da natureza que representam a habilidade de produzir alimento a partir do cultivo no solo e da caçada, pesca ou domesticação de animais — como, por exemplo, a história de Perséfone, a filha de Deméter raptada por Hades e presa ao submundo por metade do ano, mito que espelha a ciclicidade da agricultura e contextualiza a escassez dos meses de inverno. Para um olhar tão distante como o nosso, parece que o mito da rainha do mundo dos mortos substitui pobremente um conhecimento sistematizado da natureza; no entanto, como defende Michael Austin em Useful Fictions, a vantagem evolutiva da contação de histórias se deve não à riqueza de detalhes factuais da comunicação da verdade, mas às possibilidades que a narrativa propõe para garantir nossa sobrevivência. Entre os exemplos, o autor imagina um ser humano de dezenas de milhares de anos atrás que, ao ouvir um barulho num arbusto, decide fugir, temendo ser um predador; para o grupo que precisará explicar por que fugiu de sua morada, não importa se havia mesmo algo perigoso atrás das folhagens — a história a ser contada dará conta das possibilidades nefastas do barulho, da floresta, e das consequências do medo e da dispersão. E ensinará valiosas lições, sem dúvida, sobre o território onde esses humanos construíram suas vidas.
O conhecimento científico passa a ser, então, um ingrediente dos mitos culinários e culturais. Ele compõe, por exemplo, o enredo do mito de criação maia em que os primeiros seres humanos eram feitos de pasta de milho: de fato, o milho, desde que os povos indígenas na América Central desenvolveram a nixtamalização (um processo que alcaliniza o milho e aumenta seu valor nutritivo), passou a ser a base da alimentação e compreensivelmente associado à fonte da vida humana. Similarmente, embora o mito de Perséfone não se demore em descrever as etapas do plantio, ele ajuda a entender as normas da natureza como inegociáveis e expõe a alimentação como parte de um ciclo de fertilidade e morte, conhecimentos essenciais para aprender a interagir com o espaço natural.
Podemos imaginar, assim, que a contação de histórias tenha surgido em decorrência da experiência humana de produzir a própria comida, seja por meio da cooperação entre membros de um mesmo grupo que dividem as tarefas de caçar ou criar animais, dominar as plantas locais e passar os ingredientes pelos processos de cozimento que trarão sabor e nutrição, seja durante o ato de compartilhar uma refeição em conjunto e desejar complementar o evento com conversa. É com as histórias que se perpetuam receitas e métodos de produção de alimento, como as refinadas técnicas agrícolas milenares praticadas por nações indígenas por todo o mundo e complexos processos químicos, como a produção de queijos, tofu e bebidas fermentadas.
A capacidade de modificar o alimento sobrevive em nossa espécie graças à mesma engrenagem criativa no nosso cérebro que nos permite brincar, inventar, construir. O pensamento criativo permitiu solucionar problemas como baixa durabilidade, intoxicação alimentar e má palatabilidade por meio da formulação e testagem de hipóteses, como colocar o animal caçado sobre o fogo até cozinhar a carne e combinar diferentes ervas para perfumar e dar sabor aos alimentos, além de conservá-los por mais tempo. Moldar barro e argila em formato de cumbuca ocasionou a mistura de diferentes ingredientes, economizando fogo e tempo. Grandes tigelas usadas há milênios para ferver água sugerem a invenção oportuna da sopa, um prato que pode alimentar muitas pessoas com poucos recursos. Com a necessidade de armazenar e conter insumos, a cerâmica assume novas formas: jarros com tampas, pratos e copos, que logo passaram a ser decorados para indicar seu conteúdo ou serventia – o princípio do design – e, talvez acima de tudo, por prazer. Os recipientes expressam do lado de fora o fato de que carregam dentro de si a coisa mais bela que temos: o alimento.
Em torno da comida, ao longo da nossa história sobre a Terra, desenvolvemos tanto ciência como música, canto, literatura, religião, filosofia e arquitetura. Aliás, a culinária divide com a arte certo desprezo pelo utilitarismo puro. A distância entre os ingredientes e a comida é o ato de reorganizar os alimentos com sabor e cuidado. O prazer e os afetos provocados pelo ato de comer compõem nosso quadro de referências por toda a vida e influenciam nossos gostos, desejos, sonhos. Uma viagem a um outro país necessariamente envolve um passeio pelas comidas locais. Todas as nossas principais celebrações presumem pratos típicos, às vezes os mesmos por impressionantes milhares de quilômetros. Todas as culinárias clássicas nasceram no ato dos membros de cada família se juntarem para produzir comida para todos; todo o conhecimento científico hoje dispensado à produção, manipulação e distribuição de alimento se baseia nos aprendizados compartilhados entre gerações e grupos culturais.
Somos tão constituídos pelo milho quanto pelas histórias que contamos sobre o milho. É preciso seguir contando histórias.
Referências
Austin, Michael. Useful fictions: Evolution, anxiety, and the origins of literature. U of Nebraska P, 2010.
Green, Judith Strupp. “Feasting with foam: Ceremonial drinks of cacao, maize, and pataxte cacao.” Pre-Columbian Foodways. Springer, New York, NY, 2010. 315-343.
Hesíodo. Theogony.
Matsuoka, Yoshihiro, et al. “A single domestication for maize shown by multilocus microsatellite genotyping.” Proceedings of the National Academy of Sciences 99.9 (2002): 6080-6084.
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