Cultura É ordinária

Alimenta-te a Ti Mesma

A maior parte das refeições sempre foi preparada por mulheres. Segundo Douglas Bowers, em 1900, o tempo gasto no trabalho doméstico era equivalente ao da força de trabalho remunerada nos Estados Unidos: 44 horas semanais. Esse trabalho não remunerado era realizado por mulheres e a maior parte das horas de trabalho envolvia atividades relacionadas ao preparo das refeições. O casamento, como base de um contrato de relacionamento heterossexual, bem como a ausência de métodos contraceptivos, significava famílias grandes que precisavam ser cuidadas e alimentadas. O estreito entrelaçamento dos papéis de maternidade e de esposa, que também podem ser considerados formas de trabalho, não poupou as mulheres que também ocupavam um espaço na força de trabalho remunerada na esfera pública da atribuição do trabalho de prover alimentação ao resto da família. Além disso, durante a gravidez e o pós-parto podemos pensar no próprio corpo da mulher como uma espécie de fonte de alimento, gerando os nutrientes necessários ao desenvolvimento do feto e, posteriormente, do bebê.

Paralelamente, é possível constatar um aumento nas psicopatologias que envolvem a alimentação. Na verdade, a anorexia, a privação do ato de consumir alimentos, era uma manifestação comum do que os médicos do sexo masculino no início de 1900 denominavam histeria. A histeria era uma doença que pode ser entendida como o adoecimento da mulher, enfim, perante o poder masculino que ditava a maioria dos aspectos da vida. Com o estabelecimento de especialidades médicas e de saúde, como a psiquiatria e a psicologia, passou-se a dar especial atenção, em particular a partir de 1980, ao fato de que a maioria dos que desenvolviam problemas de saúde mental, como anorexia nervosa e bulimia, era do sexo feminino.

Enquanto alguns especialistas em saúde e pesquisadores, notadamente homens, entenderam isso de uma maneira essencialista, tentando localizar o que exatamente na biologia das mulheres poderia ser a causa de tal disparidade, psicoterapeutas como Susie Orbach seguiram outro caminho. Ao trabalhar com uma perspectiva feminista, fica evidente que as condições sociais e as estruturas de poder que moldam a feminilidade desempenham um papel importante no desenvolvimento dessas doenças, assim como em outros transtornos feminizados. Essa explicação sugere que a cultura (das normas da feminilidade à forma como as famílias costumam se organizar) não apenas exacerba uma condição de consumo alimentar problemático, mas a produz. Não apenas isso, mas o que chamamos de patologia, neste caso, pode realmente ser entendido como apenas um extremo em um espectro (ou, como diz Orbach, um “continuum”) do sofrimento feminino normativo.

A feminilidade nos ensina, literal e simbolicamente, a ocupar menos espaço, a alimentar os outros ao invés de nós mesmos. Quando isso é feito em uma quantidade “adequada”, ou seja, de uma forma que sirva aos propósitos do patriarcado ao mesmo tempo em que mantém as mulheres funcionando e desempenhando seus papéis, é considerado normal. Quando se torna tão extremo que cria um problema psicológico com alto índice de mortalidade, como é o caso da anorexia, torna-se uma patologia. Aqui reside a importância de compreender as psicopatologias não apenas de forma individual, mas como manifestações coletivas que podem apontar para estruturas de poder problemáticas.

Quando digo que meninas e mulheres são ensinadas a alimentar os outros em vez de a si mesmas, a colocar as necessidades dos outros à frente das próprias, a palavra “eu” vem a ser usada de várias maneiras. A Teoria da Objetificação, desenvolvida por Barbara Fredrickson e Tomi-Ann Roberts, é uma abordagem criada para explicar por que patologias como depressão, transtornos alimentares e disfunções sexuais afetam desproporcionalmente as mulheres em comparação aos homens. Culturas onde o valor de mulheres e meninas é fundamentalmente atrelado à aparência física e à função de servir aos outros podem acabar criando um fenômeno chamado de auto-objetificação. O conceito de “self” (de “self-objetification”) tem mais de um significado em psicologia, mas pode ser interpretado aproximadamente como a experiência subjetiva que temos de nós mesmos, que inclui a forma como vemos e tratamos nossos corpos. A auto-objetificação acontece quando internalizamos uma perspectiva de terceira pessoa como uma visão primária do nosso próprio corpo, de forma que acabamos nos tratando como objetos a serem observados.

Com o surgimento das mídias sociais, estamos cada vez mais inundadas por imagens. Na verdade, não inundadas: estufadas. E não é mais apenas de propaganda, que vem de uma fonte externa. Somos nós que alimentamos essas redes com fotos nossas: as selfies. Para obter feedback encorajador (na forma de curtidas) no mundo virtual, é necessário ter um corpo “bom”, o que por sua vez, principalmente para as mulheres, significa parecer o mais magra possível, aconteça o que acontecer. Para postar belas selfies, muitas meninas desenvolvem um “self” prejudicado, gastando energia e esforços em constante preocupação com como os outros veem e avaliam sua aparência. Problemas de imagem corporal, um sintoma frequente de anorexia e bulimia, estão se tornando cada vez mais comuns. Como estamos alimentando nossos corpos e nossos sentidos de nós mesmas em uma era virtual baseada em fotos?

De 1900 até o presente momento, as coisas definitivamente mudaram. Certamente não somos mais ensinadas a performar feminilidade por meio de manuais de etiqueta social que diziam que uma mulher educada cozinha as refeições, mas come delicadamente e pouco. No entanto, ainda aprendemos no que consiste ser (e aparentar ser) uma “boa mulher” por meio de outros manuais, mais tecnológicos e disfarçados. A fome feminina ainda é um problema. Fome não só de comida, mas de energia. Para um mundo onde sejamos avaliadas (e tratadas) como seres humanos, não como objetos. Um mundo onde nossas identidades não estão centradas em estar bonita.

Não sei se isso acontece em outros países, mas no Brasil é comum que os panos de cozinha sejam ornamentados com desenhos e frases pintadas à mão, geralmente religiosos. Por ser um objeto que fica na cozinha, imagine como fiquei feliz quando encontrei um com a seguinte frase: “Você não pode lutar contra o patriarcado se estiver com fome”. Na cara, pano de cozinha. Na cara.

Créditos de imagem

© [Jonás Torres] / Adobe Stock

Ana Maria Bercht

Sou uma psicóloga brasileira, que vem atuando nos movimentos feministas dentro e fora do ambiente acadêmico há cerca de 10 anos. Tenho mestrado em psicologia social e atualmente estou fazendo doutorado na mesma área. Além da atuação na clínica, trabalho em um serviço público de saúde mental e sou professora em um curso de especialização multidisciplinar na área do comportamento alimentar.