Cultura É ordinária

Contando Histórias, Implodindo Hormônios

Como outras americanas na sua idade, Dwyn Harben tinha dificuldades para engravidar. Ao buscar tratamentos médicos, ela encontrou o Dr. Norbert Gleicher, do Centro para Reprodução Humana (CHR) de Nova Iorque, que a aconselhou a fazer fertilização in vitro (FIV). O processo durou anos, com inúmeras tentativas que envolviam a estimulação ovariana para liberação de óvulos saudáveis, mas todas em vão. Cansada do longo e custo tratamento, Dwyn recorreu aos fóruns online, nos quais descobriu que várias mulheres tinham conseguido sucesso em gravidar ao se medicarem com deidroepiandrosterona (DHEA), conhecida como uma precursora da testosterona. Ela, então, decidiu arriscar e fazer um combo: injetar-se com DHEA e continuar com os tratamentos para a FIV. O resultado? Além de produzir óvulos muito mais saudáveis do que esperado pelo Dr. Gleicer, Dwyn conseguiu finalmente engravidar.

Essa poderia muito bem ser uma história de como a medicina descobriu, a partir de tratamentos experimentais realizados por pacientes, uma nova forma de tratar a infertilidade feminina. Mas não é bem assim. Como contam Rebecca M. Jordan-Young e Katrina Karkazis em seu livro “Testosterone : an unauthorized biography” (“Testosterona: uma biografia não autorizada”, de 2019), vários são os desvios necessários para que a DHEA se torne um tratamento aceito no circuito médico.

O primeiro deles é sua classificação dentro dos conhecimentos científicos. A DHEA é conhecida por ser uma precursora da testosterona. O que isso significa? Que essa molécula, quando dentro do corpo humano, vai se transformar em algum hormônio dependendo das necessidades do organismo – ela é um “pró-hormônio”, tendo efeitos hormonais mínimos. Mais especificamente, a DHEA se converte na testosterona e androstenediona, muito mais ativas, que podem então ser usadas diretamente, por meio de receptores de andrógenos, ou posteriormente convertidas em estradiol ou estrona.

Está criado o problema: como pensar que uma molécula relacionada ao hormônio dito masculino, a testosterona, teria qualquer papel no processo de ovulação e maturação dos óvulos? Como que, dentro do que conhecemos sobre o sistema reprodutivo, poderíamos racionalizar a ideia de que, ao contrário do que imaginávamos até então, tanto os hormônios masculinos como os femininos são necessários para a produção de óvulos saudáveis?

Após conseguir engravidar, Dwyn finalmente contou ao Dr. Gleicher o motivo do seu sucesso. Ao contrário do que ela havia lido online, seu médico reagiu com empolgação e ficou interessado em pesquisar mais sobre o assunto. Ele estava mais interessado em saber se a DHEA realmente tinha um efeito no processo da ovulação que tinha sido completamente passado desapercebido até então pela medicina do que duvidar de Dwyn, reforçando os papéis binários atribuídos aos hormônios desde sua descoberta.

Contudo, é aqui que a história encontra seu segundo percalço: o Dr. Gleicher, por mais interesse que tivesse nesse assunto, precisava convencer outros médicos e cientistas de que a ideia de que um pró-hormônio masculino podia sim ser essencial no processo de ovulação. E essa não é uma tarefa nada fácil.

Como Fabíola Rohden nos contou em seu texto, a associação entre os hormônios e a dicotomia sexual entre homens e mulheres é uma criação de longa data que foi traçada já no começo da descoberta da testosterona e do estrogênio. Essa relação, que fundou a ideia de um hormônio masculino e um feminino, resiste há quase um século, por mais que diversas pesquisas tenham tentado implodir tal percepção. E não precisamos ir muito longe: a constatação de que há hormônios masculinos em corpos femininos e vice-e-versa é tão antiga quanto a sua descoberta. Como a historiadora da ciência Nelly Oudshoorn nos narrou em seu livro “Beyond the natural body: An archeology of sex hormones” (“Além do corpo natural: uma arqueologia dos hormônios sexuais”, 1994), o pesquisador Enerst Laquer já tinha encontrado estrogênio na urina de cavalos em 1927 – nos primeiros anos da descoberta dos hormônios.

Aqui, não se trata de negar que os efeitos hormonais da testosterona e do estrogênio, mas, ao contrário, questionar por que esses efeitos sempre têm que cair em uma dicotomia sexual binária. Não seria possível pensar que a testosterona pode ter efeitos hormonais que não estão dentro desse espectro? Como, por exemplo, auxiliar no processo de maturação do óvulo em sua fase folicular?

A questão é que essa incapacidade imaginativa agiu contra os planos do Dr. Gleicher de conseguir pesquisar a fundo a pista de que a DHEA pode auxiliar na fertilização feminina através da produção de óvulos mais saudáveis. Isso se deu porque a ciência acaba por entrar em um looping quando se trata da questão. O primeiro passo seria comprovar que a DHEA, mesmo sendo precursora de hormônios masculinos, tem um papel fundamental no processo de maturação dos óvulos. Para isso, é necessário produzir pesquisas com mulheres que têm dificuldade de engravidar e que estejam dispostas a utilizarem a DHEA como tratamento. Contudo, há aqui dois problemas: primeiro, o conhecimento científico até então reitera a ideia dualística sobre os hormônios e, assim, é difícil de conseguir financiamento para a pesquisa. Os financiadores insistem que não há evidências suficientes nos artigos científicos para justificar o investimento nessa investigação. Em segundo lugar, as mulheres que estariam dentro da população alvo esperada, em sua maioria, já estão se tratando com DHEA, já que a substância é vendida nas farmácias americanas sem necessidade de prescrição médica.

O looping se refaz: não há incentivo para as pesquisas assim, como as mulheres alvo do teste já parecem saber sobre a eficácia da DHEA por conta dos fóruns e das suas redes de contato. No final, a história de Dwyn acaba por repetir a si mesma nas vidas de várias mulheres, tomando caminhos que podem ser perigosos, com a automedicação.

Essa história se soma a diversos outros relatos produzidos dentro de pesquisas nacionais e internacionais que buscam implodir a noção dos hormônios sexuais binários. Daniela Manica, Fernanda Vecchi Alzuguir, Emilia Sanabria, Celia Roberts e Bruna Klöppel são algumas dessas pesquisadoras que se juntam à Fabíola, Rebecca, Katrina e Nelly nessa busca por pensar quais são os efeitos hormonais que perdemos de levar a sério quando dicotomizamos os hormônios em categorias sexuais exclusivas.

Os hormônios, sendo uma descoberta do século XX, tem um longo caminho a ser percorrido em termos do conhecimento que podemos desprender sobre e a partir deles. Quando descobriu essas novas moléculas com poderes quase mágicos, o fisiologista Ernest Starling tomou inspiração em uma antiga palavra grega para nomeá-los. A raiz hormao quer dizer excitar ou provocar. Concordo com a pesquisadora Celia Roberts, foi uma escolha muito feliz, porque provocar significa modificar seu estado inicial, sair de um ponto de partida, mais do que controlar ou produzir algo. E é assim que hormônios deveriam ser percebidos: menos como normalizadores de características sexuais, e mais como entidades que provocam ações complexas e que nos propõe perguntas profundas.

Ao recontar o caso de Dwyn, é esse o efeito questionador que eu quero produzir nesse texto: por que insistimos em uma versão binária dos hormônios quando várias histórias nos apontam para relações mais complexas e menos dualísticas dessas moléculas? Por que continuar pregando que os efeitos hormonais precisam cair em uma dicotomia sexual? Nesse sentido, falar sobre hormônios é sempre falar sobre o social, uma vez que estes tem sido historicamente usados para reiterar uma visão binária do mundo que não parece condizer com sua real função. Enquanto não implodirmos os hormônios, é preciso povoá-los com histórias como a de Dwyn, para lembrar a nós mesmos que mesmo as explicações mais amplamente aceitas podem não ser capazes de comportar a complexidade do mundo.

Referências

Créditos de imagem

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Lucas Riboli Besen

Editor adjunto do Levedura. Antropólogo e pós-doutorando na UFRGS. Seus interesses atuais são: história da ciência, gênero, direitos sexuais e reprodutivos, deficiência e mídia.