Assim como parece ter sido o caso para muitas pessoas, minha relação com a alimentação passou por várias transformações ao longo da pandemia de COVID-19, principalmente nos meses iniciais de isolamento. Acho que a primeira vez que a pandemia me levou a pensar sobre comida ocorreu nos primeiros dias do primeiro lockdown da cidade em que morava no início de 2020. Naquela ocasião, fui ao mercado com minha esposa, como fazia semanalmente, e encontrei algo que não via há anos: corredores inteiros de prateleiras completamente vazias. Me fez pensar em quando eu era criança e acompanhava minha mãe ao mercado no dia seguinte ao “dia de feira” e ela sempre dizia rindo enquanto passeávamos nos corredores desertos: parece que passou um furacão por aqui.
Naquele dia em março de 2020, o sentimento era mesmo esse, de estar caminhando sobre destroços. Na sessão de produtos de padaria, apenas alguns poucos sacos desalinhados e raros ocupavam o espaço antes preenchido por dezenas de embalagens coloridas de marcas diferentes. Na sessão de ingredientes de cozinha, nem isso. Nenhum saco de farinha à vista – nenhum tipo de fermento. Nos dias que se seguiriam, esses produtos do dia a dia, agora, subitamente escassos, mobilizaram a formação de pequenas redes de solidariedade na nossa pequena comunidade de imigrantes. Se alguém achava farinha em algum mercadinho obscuro, os outros eram imediatamente avisados nas redes sociais ou no WhatsApp. Se alguém tinha fermento sobrando, logo se organizava uma entrega ou uma divisão com os vizinhos.
Essa corrida do pão, por assim dizer, me fez pensar em muita coisa sobre alimentação e cultura, e sobre como a comida é um dos elementos centrais de como se organizam as sociedades. Em retrospecto, me parece que buscávamos algum tipo de autonomia, e, por que não, de sensação de controle diante de uma situação tão assustadora e desconhecida. Fazendo nosso próprio pão, necessariamente diminuiríamos nossas idas ao mercado e a outros estabelecimentos. Tendo farinha em casa, teríamos um leque de possibilidades alimentares sempre à mão, em qualquer uma das principais refeições. Mas não era só isso, tenho certeza. A produção de pães caseiros parecia ter se tornado uma espécie de catarse coletiva e de atividade terapêutica para muitas pessoas.
Na minha rede de amigos e conhecidos, o pão caseiro se tornou um dos principais tópicos de troca e engajamento nas redes sociais. De repente, parecia que todo mundo estava dividindo receitas, assando coisas, produzindo fermentos caseiros, compartilhando memes sobre o assunto. Claro, como é da natureza da internet, o assunto se esgotou depois de algumas semanas. Além disso, as prateleiras foram re-estocadas, e nós aprendemos algumas estratégias sanitárias para ir ao mercado e a outros locais com alguma segurança. Por outro lado, muita gente parece ter desenvolvido apreço pelo gosto marcante do pão feito em casa, ou mesmo pelo processo de adquirir os ingredientes, ativar o fermento, bater a massa, entre as outras etapas.
Foi pensando nesse interesse coletivo e espontâneo pela panificação que me lembrei de uma publicação do físico Seamus Blackley. Blackley é mais conhecido por seu trabalho na indústria de videogames, mas, nessa postagem a que me refiro, ele falava sobre como uniu duas de suas grandes paixões em um incrível experimento: seu entusiasmo pela cozinha e pela arqueologia. Seu fio de tweets narrava sua empreitada em fazer pão caseiro usando fermento natural produzido a partir de leveduras dormentes que ficaram enterradas no Antigo Egito em potes de cerâmica por mais de quatro milênios.
A cultura de leveduras utilizada no projeto narrado no Twitter tinha sido fornecida por dois museus de Boston, diretamente de seus acervos arqueológicos. Devido à natureza de renovação e multiplicação praticamente infinitas do fermento, foi possível às instituições produzir várias amostras do levain para estudo em laboratório e conceder uma delas para o projeto pessoal de Blackley.
Evidentemente, a extração do material e todo o processo de reavivamento do fermento foram acompanhados por especialistas – a arqueóloga Serena Love e o microbiólogo Richard Bowman ajudaram a garantir que nenhum artefato fosse danificado na extração, e que a cultura se reproduzisse sem contaminação. Os três tiveram o cuidado de alimentar as leveduras com uma espécie de trigo geneticamente idêntica à que era cultivada quando os potes de cerâmica foram enterrados 4.500 anos antes, e que é expressivamente diferente do trigo moderno que consumimos hoje.
Testes genéticos feitos na amostra da cultura demonstraram que o fermento vinha de uma cepa de levedura que já existia pelo menos 700 anos antes de ser colocado dentro dos potes de cerâmica escavados e utilizados no experimento que narro aqui. Mas sabemos, por meio de vestígios arqueológicos, que humanos já faziam pão muito antes disso, há pelo menos 10.000 anos. É interessante mencionar que, por um longo tempo, creditou-se a criação do pão à transformação da nossa espécie de nômades para agricultores – fazia sentido pensar, afinal, que o pão teria sido criado depois de dominarmos o cultivo do trigo. Mas uma descoberta feita pela arqueóloga Amaia Arranz-Oteagui na Jordânia em 2018 colocou em xeque a teoria predominante. Arranz-Oteagui encontrou vestígios de pão datando de 14.000 anos atrás.
A descoberta abriu duas novas possibilidades para estudiosos da área: a primeira, a de que o grupo coletor Natufiana, e não os egípcios, teriam criado o pão; a segunda, endossada pela pesquisadora Lara Gonzales Carretero – arqueóloga especializada em vestígios de comida pré-histórica –, era a de que o pão teria inspirado o desenvolvimento do plantio e incentivado o desenvolvimento de técnicas agrícolas que permitiriam a emergência do sedentarismo como modo de vida. Ou seja, o contrário do que se acreditava até então, que este alimento teria sido desenvolvido posteriormente à agricultura.
Mas certamente aconteceram desenvolvimentos na produção desse alimento desde que começamos a produzi-lo. Parte do povo Gaulês, por exemplo, desenvolveu o uso da espuma de cerveja como agente fermentador, o que produzia um pão mais leve e de gosto menos forte que aquele produzido a partir do levain, e que foi popularizado pelos franceses. Os Gauleses, na verdade, desenvolveram tecnologias sofisticadíssimas em relação ao pão – desde máquinas colheitadeiras movidas a rodas, até silos subterrâneos capazes de preservar e esconder os grãos.
Então, o que traz meu pensamento sempre de volta para a história do pão feito com fermento milenar é certa fascinação com a ideia de que a ciência e a tecnologia derivam diretamente da relação da nossa espécie com a comida, e com as demandas diferentes que a comida traz para uma comunidade. A comida precisa ser segura, e para que isso aconteça, uma grande parte dos alimentos exige algum tipo de intervenção, seja na forma de calor, ou de esterilização. A comida precisa ser durável, e para isso foram inventadas por todo o mundo tecnologias incríveis de conservação, como a conserva e a desidratação, apenas para citar alguns exemplos. A comida precisa ser reproduzida de maneira estratégica para que alimente o máximo de pessoas no menor tempo possível.
Enfim, a comida é uma necessidade primordial e, por essa razão, é provável que tenha sido o principal catalizador das primeiras práticas e experimentações tecnocientíficas da nossa espécie – muitas das quais tão sofisticadas que sobrevivem até hoje, quase sem modificações. E isso me faz pensar que frequentemente precisamos lembrar a nós mesmos que a tecnologia e a inovação não surgiram durante a modernidade, com nossas fábricas, super veículos e posterior revolução digital. A tecnologia aparece quando o primeiro grupo de pessoas aplicou seu conhecimento para resolver problemas e aprimorar suas atividades cotidianas.
Então, embora o fermento que utilizo não venha do fundo de um artefato histórico enterrado no deserto, sua tecnologia me conecta, de algum modo, a esses padeiros ancestrais – os primeiros homens e mulheres a testarem interações entre um conjunto específico de fungos e a farinha do trigo. Antes mesmo da escrita permitir a sistematização e a comunicação transgeracional do conhecimento, o fermento nos permitiu transmitir adiante uma tecnologia por pelo menos 14.000 anos – passando por nômades coletores no oriente médio, pelo império milenar dos povos do Nilo, por navegadores na região da Gália. Isso sem contar as dezenas de outras civilizações que desenvolveram outras versões desse alimento em diferentes momentos e territórios.
Acho muito interessante, portanto, que muitos de nós tenhamos, em um momento de crise e incerteza tão profundas quanto tem sido a pandemia da COVID-19, revisitado nossa relação com o pão e o fermento. Algumas coisas mudaram nos últimos 14.000 anos, é verdade. Por exemplo, criamos o hábito de registrar e compartilhar por meio de nossos pequenos smartphones de ponta o resultado de nossas experiências culinárias. Por outro lado, esse alimento ainda carrega uma história milenar de cooperação e vitória sobre a escassez. Ele é, acima de tudo, um marco fundamental na produção e multiplicação do conhecimento.
Créditos de imagem
“Making Bread, 2300-2350 BC, Egypt” by Sharon Mollerus is licensed under CC BY 2.0.