Cultura É ordinária

O bumbum brasileiro: cirurgias plásticas e raça

Em fevereiro de 2021, o jornal britânico The Guardian publicou uma reportagem sobre o brazilian butt lift (BBL) ou lifting de bumbum brasileiro. No Brasil, esse procedimento é conhecido como lipoescultura, onde a gordura da própria paciente é utilizada para remodelar os contornos corporais. A gordura retirada do abdômen, por exemplo, é injetada em outras áreas, como quadril e nádegas, criando novas curvas.

Segundo os dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), apresentados na reportagem, esta cirurgia cresceu 77,6% em todo o mundo, desde 2015. Em 2019, foram 54 894 cirurgias realizadas, das quais 18 370 (33%) executadas nos Estados Unidos, Brasil e México. A reportagem também aponta a presença marcante de figuras como Kim Kardashian, Jennifer Lopez e Nicki Minaj nas mídias, referências quando o assunto é bumbum ideal.

No imaginário popular, em especial no norte global, as mulheres brasileiras são associadas a quadris largos e bumbuns grandes. Imagens de festas populares, como o Carnaval, e de nossas praias, recheadas de corpos voluptuosos e biquínis minúsculos, ilustram a fantasia do ‘bumbum brasileiro’. Idealiza-se o corpo da “mulata”, conforme descrito pelo antropólogo Álvaro Jarrín, que realizou uma pesquisa etnográfica sobre cirurgia plástica no Brasil.

O Brasil é um centro de pesquisa e desenvolvimento na área da cirurgia plástica e forma centenas de profissionais, nas mais diversas especialidades. Isso se deve a um contexto muito específico de acesso, que atua como uma via de mão dupla entre pacientes e profissionais. O desenvolvimento de novas técnicas e intervenções, por exemplo, está diretamente associado à possibilidade de praticar nos corpos de mulheres negras e de classes mais baixas.

Diversas cirurgias plásticas são ofertadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), quando entendidas como cirurgias de cunho reparador, ou seja, que visam restaurar ou reparar alguma alteração, anomalia ou disfunção. Já o setor privado oferta formas de pagamento que facilitam o acesso, como a cirurgia programada e o ‘carnê’, situações nas quais a paciente paga determinada quantia por mês, até que os custos sejam cobertos. Ou seja, procedimentos estéticos em geral, sejam eles cirúrgicos ou não, não são exclusivos para as classes média e alta. Situação única que se difere do resto do mundo.

Um olhar mais atento a diversas intervenções estéticas nos permite enxergar o entrelaçamento das cirurgias plásticas com políticas eugenistas. A história da cirurgia plástica é marcada por essa relação, mesmo que façamos um esforço recorrente para apagar o seu caráter racial. Nesse contexto, o trabalho de Sander Gilman é exemplar. O autor afirma que a história da cirurgia plástica não está associada somente a um processo de normalização ou embelezamento, é também marcada por questões raciais. Dentre os mais de vinte procedimentos abordados por ele, podemos citar a mamoplastia redutora, realizada em larga escala no final do século XX no Brasil. Seios grandes estariam associados às mulheres negras, de forma que as famílias de classe média presenteavam as suas filhas com a operação, afastando-as de uma estética racializada. Podemos citar outras cirurgias que visam o mesmo objetivo, como a rinoplastia, quando esta visa corrigir o nariz ‘negroide’, nomenclatura adotada por médicos eugenistas que ainda está em uso.

Na literatura antropológica e feminista, existem diversos procedimentos associados a um caráter ‘étnico’, amplamente criticados por apagar marcas identitárias, através de um processo de internalização do racismo. Uma destas intervenções é a blefaroplastia, também conhecida como cirurgia de ocidentalização dos olhos. A filósofa Cressida Heyes retoma as críticas feministas à cirurgia, e questiona: por que somente os corpos não-brancos ou etnicamente marcados são lidos como engajados em projetos de conformação corporal? A autora afirma que todos os processos de modificação corporal estão implicados por normas estéticas, que possuem recortes de classe, raça, gênero, idade, capacidade, etc. E as pessoas brancas participam ativamente desses tensionamentos.

Pensemos a partir de outro procedimento realizado nos olhos, conhecido como foxy eyes, ou olhos de raposa, que visa esticar o canto externo dos olhos, deixando o olhar supostamente mais sensual. A influenciadora e atriz Flávia Palavalli, que conta com mais de 18 milhões de seguidores no Instagram, realizou a operação em 2020. Nas redes sociais, questionou-se: por que mulheres orientais são criticadas por ‘ocidentalizar’ o olhar, mas as mulheres ocidentais se tornam empoderadas por buscar alterações que deixam seus olhos ‘sensuais’?

Vamos relembrar a cena icônica de abertura dos Jogos Olímpicos de 2016, sediados no Brasil. Gisele Bündchen desfila em uma longa passarela, ao som de Garota de Ipanema. Seus cabelos loiros estão soltos e a modelo utiliza um vestido dourado com uma longa fenda lateral. A cena foi televisionada para todo o mundo e com frequência volta a ser mencionada nos trend topics do Twitter. Gisele foi a primeira supermodelo brasileira a ganhar as passarelas internacionais e, nos primeiros anos da década de 2000, foi a modelo mais bem paga do mudo. O padrão vendido por Gisele não corresponde ao ideal do bumbum brasileiro.

Todas as mulheres brasileiras possuem o mesmo biotipo? Evidente que não. Para as passarelas e comércio exterior, os corpos que se aproximam de um ideal ocidentalizado, do norte global, sãoideais. Ao buscar modificações corporais associadas a marcas raciais ou étnicas, como quadris largos e bumbum grande, seios avantajados ou olhos mais alongados, as mulheres brancas buscam traços exóticos ou sensuais sem se tornarem socialmente marcadas pelos novos contornos, como Melissa, entrevistada para a reportagem do The Guardian. A britânica buscou o procedimento em 2018 para “preencher o jeans” e atrair a atenção de homens “negros e mestiços”, que, de acordo com a jovem, “gostam de mulheres com mais curvas”.

Como centenas de outras categorias, a beleza não possui uma só face. Dentro de um mesmo grupo, existem diversos padrões de beleza, atravessados por classe, raça, gênero, idade, capacidade, acesso, saúde. Estes padrões se alteram de acordo com o contexto social, econômico e político no qual estamos inseridas e ao longo do tempo. O desenvolvimento de técnicas cirúrgicas e a formação de profissionais, assim como todo o conhecimento científico, não se dá no vácuo, estamos imersas em relações sociais que tangenciam os possíveis entendimentos do mundo.

A idealização do bumbum brasileiro não remete somente à construção das curvas ideais e desejadas, vendida através de um procedimento cirúrgico cujo crescimento vêm se mostrando expressivo nos últimos anos. É preciso atentar para o quadro mais geral: o contexto de desenvolvimento das tecnologias e como elas são disseminadas, o público que têm acesso a estes serviços e, sobretudo, os aspectos políticos e sociais que fundamentam a possibilidade de existência de determinadas transformações corporais.

Referências

  • ELMHIRST, Sophie. Brazilian butt lift: behind the world’s most dangerous cosmetic surgery. The Guardian. 9 de fev. de 2021.

  • HEYES, Cressida J. All cosmetic surgery is “ethnic”: Asian eyelids, feminist indignation, and the politics of whiteness. In: HEYES, Cressida J.; JONES, Meredith (Eds.). Cosmetic surgery: a feminist primer. London: Routledge, 2009. p. 191-205.

  • GILMAN, Sander. Making the body beautiful: a cultural history of aesthetic surgery. Princeton: Princeton University Press, 1999.

  • JARRÍN, Alvaro. The biopolitics of beauty: cosmetic citizenship and affective capital in Brazil. Oakland: University of California Press, 2017.

Créditos de imagem

Camila Silveira Cavalheiro

Graduanda em Ciências Sociais na UFRGS. Seus principais interesses são: antropologia, gênero e sexualidade, ciência, saúde e alimentação.