O parto ocorreu bem, mas o bebê não foi levado até a mãe como o esperado. O pai, assustado, foi ao encontro dos médicos para saber o que havia acontecido, mas ninguém lhe dava informações. Depois de muita insistência, que resultou em uma discussão acalorada com um dos seguranças do hospital, finalmente permitiram que tivesse acesso ao local onde estava o recém-nascido. Antes, porém, o obstetra anunciou: não sabemos exatamente o que fazer, o menino nasceu sem rosto.
A mãe e o pai descobriram, alguns dias depois, que a abertura que se estendia do lábio superior ao nariz de seu bebê, passando pelo céu da boca, era o que a medicina denomina de fissura labiopalatina, uma anomalia congênita que ocorre no período embrionário, até a 12ª semana de gestação. Thyago, hoje um advogado e interlocutor da pesquisa que estou desenvolvendo, tinha um rosto. Um rosto que, depois de mais de 10 cirurgias realizadas ao longo de duas décadas de tratamento, exibe uma pequena cicatriz. A história verídica, ocorrida em meados dos anos 80 em um hospital de São Paulo, se repete nos dias atuais. São muitos as(os)profissionais da medicina que, assim como a maioria dos leigos, não sabe como agir ao se depararem com faces que cruzam a fronteira do que consideramos normal.
Como no caso do médico que não soube nomear a condição do bebê, o vasto campo de informações textuais e imagéticas das quais dispomos parece não ser suficiente para falar da face – que aqui utilizo como sinônimo para o rosto. Ela nos escapa ao mesmo tempo em que nos constrange. Garland-Thomson, teórica dos estudos da deficiência, diz que o rosto é um problema epistemológico que apenas pode ser resolvido por meio de analogias. Daniel Black, pensador da área da comunicação, descreve o rosto como um fenômeno anatômico e perceptivo, a parte mais instável e ilusória do corpo humano. Aquilo que extrapola, a todo instante, os esforços de capturá-lo ou estabelecer uma visão generalizada de sua realidade. Reconhecer a face de alguém que prezamos ou nutrimos afeto, para Black, não diz respeito somente à combinação das formas; mas também aos sentimentos que ela nos comunica. E isso, certamente, está atado a nossos pressupostos e preconceitos.
Mas o que faz do rosto um dos centros de atenção do corpo? Aquilo que em grande medida concentra a identidade para si e a comunicação com o entorno? Estes são questionamentos que me inquietam e sobre os quais não tenho a pretensão de oferecer respostas. Todavia, algo me ajuda a pensar a respeito deles de forma um pouco mais “organizada”: a ideia de que a face se espalha. Um exemplo disso é que tomamos, muitas vezes, a face pelo indivíduo e o indivíduo pela face. O rosto parece emanar para o restante do corpo e para além dele. Seja por meio dos sentidos – visão, audição, tato e olfato -, seja por meio da fala e suas expressões, o rosto não termina em si mesmo.
Também poderíamos nos perguntar: o que é um rosto? Ora, são quatorze ossos individuais que juntos formam partes do sistema digestivo, respiratório, visual e olfativo. Um conjunto a partir do qual inferimos o gênero, a faixa etária, a etnia e a classe social. Contudo, se o rosto é uma das maiores expressões de nossa humanidade, como diz o antropólogo David Le Breton, e se ele, como uma tela, permite ao espectador captar aquilo que o corpo insiste em desnudar, ou seja, sentimentos e emoções os quais não conseguimos suprimir ou mascarar; ele é também alvo de massivas intervenções cujo objetivo é, preponderantemente, ajustar-lhe a forma – como as cirurgias plásticas.
Hoje, até mesmo a biologia afirma que o rosto é uma combinação de influências biomecânicas, fisiológicas e sociais. Na fase embrionária, a face começa a se desenvolver por volta do vigésimo quarto dia. Células pluripotentes especializadas, chamadas de células da crista neural craniana, são as principais responsáveis pelo esqueleto facial cujo desenvolvimento ocorre concomitantemente e de maneira interdependente à caixa craniana. Inclusive, é a partir daí que surgem as fissuras labiopalatinas, como as que o Thyago nasceu. Admito que talvez essas informações possam soar um pouco desconexas, mas trago elas aqui porque foram importantes para que eu pudesse, de forma um pouco mais coordenada, pensar sobre o rosto. Já já chegarei lá.
Enquanto estudava um pouco a respeito da embriologia da face, a fim de entender um pouco melhor o caso de Thyago e de outros(as) interlocutores (as) de pesquisa, deparei-me com o seguinte termo: processo facial. Enquanto leiga, deslumbrava-me com as imagens do que entendia serem o nariz, a boca, os olhos. Para a embriologia, no entanto, a nomenclatura correta era “processo de proeminência frontonasal”, “processo de proeminência maxilar”, etc. Certamente, em determinado ponto da gestação e principalmente após o nascimento, esses “processos” deixam de assim ser encarados e passam a ser nomeados pelas partes que usualmente conhecemos. Todavia, o que me chamou atenção foi que a face em si, mesmo em termos biológicos, não está “pronta”. Seja porque ainda está em um estágio embrionário, seja porque ao nascermos não dispomos de dentes, ou porque a visão e o olfato ainda estão em desenvolvimento. E se voltarmos um olhar cuidadoso para o rosto – e isso se aplica ao restante do corpo -, veremos que, nem mesmo depois da fase adulta ele está “finalizado”. Ao longo da vida estes “processos faciais” são bastante evidentes, especialmente ao envelhecermos. Ainda assim, conferimos a face estatuto de uma coisa sólida e acabada, e ficamos aturdidos quando nos damos conta da pouca agência que temos em relação a estas mudanças. Para Gilman, historiador da ciência, intervir no corpo por meio de cirurgias e outras tecnologias estaria conectado a esse temor. Uma forma de assumirmos o controle não apenas do corpo físico, mas de tudo aquilo que ele representa. No caso da face, como mencionei anteriormente, do que somos enquanto indivíduos, nosso caráter e personalidade.
Seja por meio de tecnologias de embelezamento e reparação ou para acompanhar os processos fisiológicos concebidos como mais naturais, nossos rostos estão constantemente em um processo de feitura. E mesmo sendo fenômenos que sempre nos acompanharam, a face e a forma como a modificamos – ou como tentamos interromper suas transformações – ainda são pouco estudadas. É importante dizer que tecnologias como as cirurgias plásticas, apesar de serem encaradas como novidade, existem desde a Antiguidade. Foi só no século XVI e em decorrência da epidemia de sífilis, entretanto, que passaram a ser realizadas com maior recorrência. Naquele momento chamados de chirurgia decoratoria, estes procedimentos visavam à reconstrução do nariz de pessoas acometidas por um estágio avançado da doença.
Já nos séculos XIX e XX, com a Guerra da Criméia (1853 -1856) e a Primeira (1914 – 1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), houve um grande incremento das técnicas cirúrgicas. Devido ao imenso número de vítimas com rostos e corpos mutilados e queimados, os métodos de reconstrução passaram a ser cada vez mais especializados. A cirurgia plástica começa então a se afastar do estigma que a associava apenas aos males decorrentes da sífilis e passa a representar uma área da medicina que trata daqueles que servem à nação, tornando-se, pouco a pouco, respeitável em termos de profissão.
No Brasil, segundo país que mais realiza cirurgias plásticas no mundo, a figura de Renato Kehl teve grande destaque. O médico e eugenista (1889 – 1974), muito antes do renomado Ivo Pitanguy, destacou-se por atribuir à cirurgia plástica um papel que extrapolava a estética. Para Kehl, o regime, a hereditariedade e a cirurgia plástica eram elementos cruciais para a “cura da fealdade” do povo brasileiro. Sim, segundo o médico, a população brasileira era demasiadamente degenerada e os procedimentos corretivos de “malformações” eram aliados não apenas dos indivíduos, mas da nação como um todo, de modo que deveriam ser realizados não apenas em casos esparsos, mas de modo amplo e contínuo.
A relação entre as ciências que estudam e intervém na face com a eugenia e o racismo é muito mais vasta, porém. A criminologia aliada à craniometria, que tem como principal representante o italiano Cesare Lombroso (1835 – 1909) e a fisiognomonia, empreendimento originário da Índia, sinalizado já em certas passagens bíblicas e, muito antes, em Pitágoras (570 a.C. – 490 a.C.), tomam as feições faciais como indícios da personalidade e do caráter. O exterior como uma revelação do interior. A ideia, aquela de que a face se espalha, novamente aqui nos ajuda a entender um pouco de como também a ciência muitas vezes concebeu a face como espelho límpido, e às vezes irrefutável, do indivíduo. O que é bastante problemático e perigoso. Chegou-se acreditar que operar a face de determinadas pessoas consideradas feias poderia ajudar na diminuição da criminalidade. Ou que o “nariz judeu” ou o “nariz negroide” seriam defeitos a serem reparados. Estas mesmas cirurgias, é importante salientar, possibilitam pessoas nascidas com fissuras labiopalatinas a falar, comer e respirar com maior qualidade e sentirem-se confortáveis com a estética da própria face.
Em uma conversa que tivemos em maio de 2020, André, um interlocutor de pesquisa que assim como Thyago nasceu com fendas labioplatinas, disse-me a seguinte frase: “Eles pegam essa cicatriz – apontando para a região entre o lábio superior e a base do nariz – e transportam para o seu corpo inteiro”. Ele se referia ao preconceito sofrido, ao tratamento que muitas vezes recebeu em entrevistas de emprego e no contexto acadêmico por ter uma marca no rosto e falar de maneira um pouco anasalada. Mais uma vez, o rosto e aquilo que ele traz sendo interpretado como uma representação total do indivíduo.
Padrões faciais de beleza e normalidade que se ancoram em pressupostos racistas, capacitistas e até mesmo eugenistas têm muitas vezes guiados nossos entendimentos sobre o que é uma face ou como ela deveria ser. Isso não quer dizer, contudo, que devemos desacreditar das ciências e dos médicos ou tratar todos os procedimentos de intervenção facial como tecnologias perversas. Nada disso. Contudo, assim como o rosto está num contínuo processo de feitura, o qual não se finda na maturação que presumimos acontecer na fase adulta, as disciplinas que tratam da face e a ciência de modo geral – como muitos antropólogos e filósofos da ciência têm insistido- devem periodicamente se questionar sobre as perguntas que as guiam, as ideias que as organizam. É preciso que deixem cada vez mais evidente sua natureza inacabada. Ou correm o risco de, através de conhecimentos mortos, contribuir para uma sociedade que não preza pela diversidade da vida.
Referências
BLACK, Daniel. What is a face?. Body & Society, v. 17, n. 4, p. 1-25, 2011.
DAVIS, Kathy. Reshaping The Female Body: the dilemma of cosmetic surgery. New York: Ed. Routledge, 1995.
GARLAND-THOMSON, Rosemarie, Staring: How we look. Oxford University Press, 2009.
- GILMAN, Sander. Making the Body Beautiful: A Cultural History of Aesthetic Surgery. Princeton: Princeton University Press. 2001.
KEHL, Renato. A cura da fealdade: eugenia e medicina social. São Paulo: Monteiro Lobato & Co-Editores, 1923.
LACRUZ, Rodrigo S. et al. The evolutionary history of the human face. Nature ecology & evolution, v. 3, n. 5, p. 726-736, 2019.
M’CHAREK, Amade. Tentacular Faces: race and the return of the phenotype in forensic identification. American Anthropologist, [S.L.], v. 122, n. 2, p. 369-380, 6 maio 2020. Wiley.
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