Cultura É ordinária

Donda e a lei dos mortos

Donda, Donda, Donda – o novo álbum homônimo de Kanye West foi lançado apenas algumas semanas atrás e começa com um belo e taciturno coro do nome de Donda West. Não é nenhum segredo que o rapper tem enfrentado graves problemas de saúde mental ao longo dos anos, então, para muitos fãs, foi ótimo ver o músico de volta aos holofotes por algo diferente de notícias tabloide. O álbum leva o nome da falecida mãe e gerente do rapper, uma professora universitária que parece ter entendido que a escola não é, e não deveria ser, o único lugar de aprendizado. Mesmo como educadora – ou talvez, exatamente porque era uma – Donda apoiou os esforços artísticos de seu filho desde que era um adolescente. Mas entre a celebração de sua mãe e seus ensinamentos, as canções em Donda também são lamentações por sua ausência. Donda West morreu em 2007, após complicações de uma cirurgia plástica.

Como já sabemos, este volume de Levedura é sobre cirurgia plástica. Este nunca é um tópico fácil de abordar, mas eu tinha certeza de que nossas autoras convidadas trariam visões refinadas para um tema espinhoso. E foi o que fizeram. De intervenções destinadas a atingir padrões de beleza impossíveis à cirurgia reconstrutiva em recém-nascidos, vimos nesta edição que as cirurgias plásticas são frequentemente realizadas em contextos diametralmente opostos. Mas uma coisa que parece ser comum em ambas as extremidades dessa régua é que em nenhum caso a cirurgia plástica parece ser vista como “cirurgia de verdade”.

A cirurgia plástica, como a maioria das coisas no mundo, não é um conceito, ideia ou procedimento novo. Há registros de cirurgias reconstrutivas realizadas na Índia e no Egito em 800 a.C. e até mesmo antes: pedaços de pele sendo removidos e reimplantados, narizes sendo reconstruídos, lábios fraturados sendo suturados com pontos. De fato, a palavra “plástico” parece vir da palavra grega plastike, que se refere à arte de esculpir e modelar, o que me leva a acreditar que procedimentos semelhantes devem ter sido igualmente comuns em outras partes do mundo, inclusive na Antiguidade. Afinal, modificar nossos corpos permanentemente ou momentaneamente é um dos poucos traços humanos transculturais de que temos conhecimento.

No centro de Porto Alegre, caminhei pelas mesmas duas ou três ruas todos os dias por cerca de 8 anos. E uma das muitas coisas que vi todos os dias naquela época foram as clínicas tentando vender cirurgias estéticas, como implantes de seios, remoção de gordura e procedimentos de renovação vaginal. Para ser sincera, essa descrição provavelmente se encaixa em qualquer outra grande cidade brasileira. Essas clínicas de estética estão simplesmente… ali. Entre drogarias, mercearias, bares, restaurantes, cabeleireiros, produtos Nike – originais e falsos.

Mas agora, enquanto paro e reflito sobre isso, acho estranho pensar sobre o quão comum essas clínicas se tornaram. Bem, eu acho que não é como se eles estivessem oferecendo e realizando cirurgias cardíacas… certo? Não é uma cirurgia de verdade… apesar das lâminas de verdade, da anestesia de verdade e do sangue de verdade. Sem falar nas mortes muito reais e irreversíveis que acontecem todos os anos em decorrência de imperícia cirúrgica e negligência.

No Brasil, e pelo que sei em todos os Estados Unidos, sequer existem regras claras sobre quais exames pré-operatórios um médico deve obrigatoriamente pedir antes de realizar um procedimento cosmético cirúrgico. Diretrizes existem, mas não são compulsórias. Os cirurgiões são livres para escolher quais aspectos da saúde do paciente e quão longe em seu histórico médico desejam ir antes de dar a você o sinal verde para encarar o bisturi. No caso de Donda West – e no caso de muitas outras pessoas – um exame de saúde extenso e detalhado provavelmente a teria considerado inadequada para cirurgia plástica devido a problemas de saúde pré-existentes. Descobrir uma doença até então despercebida no pré-operatório talvez pudesse inclusive ter estendido sua vida. Poderia ter sido a oportunidade para tratar de um defeito cardíaco desconhecido ou de problemas na coagulação do sangue antes que fosse tarde demais.

Mas não foi assim que a história se deu. Na Califórnia, a morte de Donda West gerou um debate social sobre a pré-triagem antes das cirurgias estéticas, mas a Lei Donda West, aprovada em 2010, é mais um consolo pobre e uma homenagem do que uma regulamentação real sobre as práticas cirúrgicas. Embora o regulamento “proíba os médicos de realizar cirurgia estética eletiva sem um exame físico e autorização de um profissional médico”, ele também diz que “violar a disposição não constitui um crime”. Em outras palavras, um infrator seria julgado por uma junta médica, mas não enfrentaria acusações criminais.

Mas este artigo não se pretende como um alerta para desencorajar procedimentos cosméticos. Esta é uma reflexão pessoal sobre como as cirurgias plásticas são uma das muitas áreas da ciência e da medicina nas quais precisamos investir em educação em saúde e em regulamentação melhor e mais explícita. Não faço aqui um apelo para que as mulheres reconsiderem a realização de procedimentos estéticos, mas, sim, para que os legisladores, pesquisadores, médicos e cirurgiões se certifiquem de que as informações sejam comunicadas de forma honesta e clara aos pacientes. Os cirurgiões plásticos precisam ser responsabilizados por não examinar devidamente seus pacientes – ou por examiná-los e escolher ignorar os resultados, já que esses profissionais sabem melhor do que ninguém que as cirurgias plásticas são intervenções cirúrgicas com consequências bastante reais.

Nenhum procedimento médico jamais será completamente isento de riscos, é claro – seria tolice pensar o contrário. Mas o fato é que há um longo caminho pela frente para garantir que as pessoas estejam cientes de quais são seus direitos, quais os riscos que podem enfrentar e como escolher clínicas e médicos qualificados. Afinal, a dura verdade é que toda lei com o nome de alguém é uma lei com o nome de uma vítima de uma tragédia, e homem nenhum deveria ter o poder de decidir quanto cuidado é demais quando se trata da saúde de outra pessoa. Coletivamente, no entanto, nós temos o poder de reduzir essas tragédias. Temos o poder de homenagear pessoas queridas com mais canções e menos leis póstumas.

Créditos de imagem

Larissa Costa Duarte

Antropóloga e professora adjunta na área de Estudos Feministas e de Gênero. Seus interesses atuais são: mídia, arqueologia, história da ciência, saúde global e crimes da globalização.