Quando tudo mudou (1972)
Katy dirige como uma louca; a gente devia estar virando a mais de 120km por hora naquelas curvas. Ela é boa, no entanto, extremamente boa, e eu já tinha visto ela desmontar um carro e montar ele de novo no mesmo dia. Meu local de nascimento em Whileaway era majoritariamente dedicado à maquinaria rural e eu me recuso a lutar com um câmbio de cinco marchas a velocidades absurdas não tendo obrigação de fazê-lo, mas mesmo naquelas curvas no meio da noite, em uma estrada péssima de um jeito que apenas nosso distrito conseguia fazê-lo, o jeito da Katy dirigir não me assustava. Há uma coisa curiosa sobre minha esposa, no entanto: ela se recusava a mexer em armas. Ela já foi fazer escaladas nas florestas acima do paralelo quarenta e oito sem nenhuma arma de fogo, por dias a fio. Isso, sim, me assusta.
Katy e eu temos três crianças no total, uma dela e duas minhas. Yuriko, a minha mais velha, estava adormecida no banco de trás, sonhando sonhos de crianças de doze anos sobre amor e guerra, fugas pelo mar, caçadas ao norte, sonhos de pessoas estranhamente bonitas em lugares estranhamente belos, todas as maravilhosas tolices sobre as quais se pensa quando chegamos perto dos doze anos e as glândulas começam a funcionar. Em algum dia próximo, como todo o resto, ela vai desaparecer por várias semanas até retornar suja e orgulhosa por ter matado sua primeira pantera com uma faca, ou atirado em seu primeiro urso, arrastando o cadáver de alguma besta anormalmente perigosa que eu jamais perdoarei pelo mal que poderia ter feito a minha filha. Yuriko diz que o jeito de Katy dormir sempre lhe faz adormecer. Para alguém que lutou três duelos, eu tenho medo de muito, muito mais do que isso. Estou envelhecendo. Eu disse isso para minha esposa.
“Você só tem 44 anos” ela disse. Lacônica ao ponto do silêncio, ela é. Ela ligou as luzes no painel – faltavam 3km e a estrada só piorava. Bem a fundo no interior. Árvores de um verde elétrico iam em direção aos nossos faróis e em volta do carro. Eu coloquei a mão embaixo tentando alcançar o suporte que tínhamos aparafusado à porta e eu então peguei o rifle e pus no colo. Yuriko se agitou no banco de trás. Ela tinha o meu porte, mas os olhos e o rosto eram da Katy. O motor do carro é tão silencioso, Katy diz, que é possível ouvir a respiração no banco de trás. Yuki estava sozinha no carro quando a mensagem chegou, decodificando entusiasticamente suas mensagens em código Morse (era tolo montar um transmissor de frequência perto de um motor de combustão interna, mas quase tudo em Whileaway era movido a vapor). Ela saiu correndo do carro, minha prole desengonçada e escandalosa, gritando bem alto, então é claro que ela precisava ter vindo conosco. Nós nos preparamos intelectualmente para isto desde que a colônia havia sido fundada e depois, abandonada, mas isso era diferente. Era terrível.

“Homens!” Yuki gritou pulando sobre a porta do carro. “Eles voltaram! Homens da Terra de verdade!”
Nós os encontramos na cozinha da fazenda perto do lugar onde eles haviam pousado; as janelas estavam abertas, o vento noturno estava bem ameno. Nós passamos por todo tipo de transporte quando estacionamos lá fora – tratores a vapor, caminhões. Tínhamos um caminhão de carga, e até mesmo uma bicicleta. Lydia, a bióloga do distrito. Havia deixado sua taciturnidade nortenha por tempo o suficiente para coletar amostras de urina e de sangue e estava sentada no canto da cozinha balançando a cabeça em descrença pelos resultados; ela havia até mesmo se forçado (sempre muito grande, muito justa, muito tímida e sempre dolorosamente corada) a verificar os manuais das línguas antigas – apesar de que eu consigo falá-las enquanto durmo. E eu realmente o faço. Lydia está desconfortável conosco; nós somos sulistas e muito espalhafatosos. Eu contei vinte pessoas naquela cozinha, as mais inteligentes do Continente do Norte. Phylis Spet havia chegado de planador. Yuki era a única criança ali.
E foi aí que eu vi os quatro.
Eles são maiores que a gente. Maiores e mais largos. Dois eram mais altos que eu, eu sou grande, 1,80 com os pés descalços. Eles são claramente da nossa espécie, mas tem algo que não parece certo, indescritivelmente não pareciam certos, e os meus olhos não conseguiam e ainda não conseguem compreender bem as linhas naqueles corpos alienígenas, de modo que eu não consegui me fazer tocá-los, apesar de que aquele que falava russo ter tentado apertar minha mão, um hábito do passado, eu suponho. Ele parecia bem-intencionado, mas eu me vi andando para trás até cobrir toda a extensão da cozinha – e então eu ri me desculpando-me depois para dar o bom exemplo (diplomacia interestelar, eu pensei) finalmente apertei sua mão. Uma mão bem áspera. Eles são pesados como cavalos de tração. Vozes confusas e profundas. Yuriko havia se esgueirado entre os adultos e olhava boquiaberta para os homens.
Ele virou a cabeça – essa palavra não havia existido em nosso vocabulário pó seiscentos anos – e disse em um russo ruim:
“Quem é?”
Minha filha, eu disse, e depois acrescentei (com uma atenção exagerada às boas maneiras que às vezes empregamos em momentos de insanidade). Minha filha, Yuriko Janetson. Nós usamos o sistema patronímico de nomeação. Ou matronímico, como vocês chamam provavelmente.
Ele riu, involuntariamente. Yuki exclamou, “Eu imaginava que eles seriam bonitos!” disse desapontada com aquela recepção. Phyllis Helgason Spet, a quem algum dia hei de matar, me deu um olhar frio, superior e venenoso através da sala, como se dissesse: Cuidado com o que vai dizer. Você sabe do que sou capaz. É verdade que eu não tenho muito status formal, mas a Sra. Presidente vai ter sérios problemas comigo e com todo o resto da equipe se continuar a achar que espionagem industrial é uma opção viável. Guerras e rumores de guerras, como dizem em um dos livros de nossos ancestrais. Eu traduzi as palavras de Yuki para o russo esdrúxulo daquele homem, que uma vez fora nossa língua franca, e o homem riu novamente.
“Onde estão as pessoas todas?” ele disse informalmente.
Eu traduzi novamente e observei os rostos na sala; Lydia envergonhada (como sempre), Spet acirrando os olhos como se tramasse algo, Katy muito pálida.
“Isso aqui é Whileaway,” eu disse
Ele continuou a observar como se permanecesse confuso.
“Whileaway,” eu disse. “Vocês se lembram? Vocês mantêm registros? Houve uma peste em Whileaway.”
Ele pareceu moderadamente interessado. As cabeças se inquietaram no fundo da sala, e eu percebi uma agitação da delegada enviada pelo Parlamento de Profissões; de manhã, todas as reuniões da cidade, todos os cáucus dos distritos, estariam com as sessões lotadas.
“Peste?” Ele disse. “Que azar.”
Sim, eu disse. Um grande infortúnio. Perdemos metade da nossa população em uma geração. Whileaway teve sorte eu disse nós tínhamos um gene pool inicial enorme, tínhamos sido escolhidas por nossa inteligência extrema, tínhamos uma tecnologia avançada e toda pessoa adulta dominava duas ou três expertises. O solo era bom. O clima era gloriosamente agradável. Existem trinta milhões de nós agora. As coisas estão crescendo como uma avalanche na indústria – você compreende? – em setenta anos nós teremos mais de uma grande cidade e mais do que uns poucos centros industriais, teremos profissionais em tempo integral, operadores de radio em tempo integral, maquinistas em tempo integral, dê-nos setenta anos e nem todas as pessoas terão que passar ¾ da vida em uma fazenda. E eu tentei explicar como era difícil quando artistas só podiam exercer sua profissão no final da vida, e pouquíssimas podiam ser livres como eu e Katy. Eu tentei explicar nosso modo de governo, que consistia de dois segmentos, um dividido por profissões e outro por localidade; Eu contei a ele que os cáucuses dos distritos lidavam com problemas grandes demais para as cidades sozinhas. E que o controle de população ainda não era um problema, embora fosse possível que se tornasse dentro de algum tempo. Este era um ponto delicado da nossa história; nós precisávamos de tempo. Não havia necessidade de sacrificar nossa qualidade de vida para se apressar em um processo de industrialização desesperado. Deixe-nos seguir em nosso passo. Dê-nos tempo.
“Onde estão todas as pessoas?” ele disse monotemático
E então percebi que ele não se referia as pessoas, mas aos homens, e ele empregava um sentido a esta palavra que não era o mesmo que usávamos havia pelo menos seiscentos anos.
“Eles morreram,” eu disse. “Trinta gerações atrás.”
Eu pensei que tínhamos lhe matado. Ele ficou sem ar. Fez menção de se levantar da cadeira em que estava; levou a mão ao peito. Ele nos olhou com uma mistura estranha de surpresa e de um tenro sentimentalismo. Depois ele disse sério e solenemente:
“Uma grande tragédia.”
Eu esperei sem entender direito.
Sim, ele disse, recuperando a respiração com um sorriso estranho, aquele sorriso juvenil que te diz que algo está sendo escondido de você e que logo será apresentado com clamores de encorajamento e alegria, “uma grande tragédia. Mas ela terminou.” E ele nos olhou a todas novamente com grande deferência. Como se fossemos inválidas.
“Vocês se adaptaram incrivelmente,” ele disse.
“A quê?” eu disse. Ele pareceu envergonhado. Ele pareceu inepto. Finalmente ele disse, “De onde venho as mulheres não se vestem de maneira tão simples”.
“Elas se vestem como você?” eu disse. “Como uma noiva?” porque os homens estavam vestindo um traje prateado que lhes cobria todos. Eu nunca havia visto nada tão berrante. Ele fez como se fosse responder e depois pareceu mudar de ideia; ele riu de mim novamente. Ele parecia estranhamente contente – como se nós fôssemos coisinhas infantis e maravilhosas, como se ele nos tivesse fazendo um favor – ele respirou fundo e disse, “Bem, estamos aqui agora.”