Cultura É ordinária

Os Hormônios Dando o Rumo

Hoje em dia, muitas vezes, temos a impressão de que os hormônios são usados para explicar qualquer coisa. A lista vai desde mal-estares, cansaço, problemas de crescimento, de libido, de sono, de humor até o que seriam os seus efeitos positivos, na performance física ou intelectual, no prolongamento da juventude, na manutenção da beleza. Em certa ocasião, Paula, participante de uma pesquisa sobre o tema, contou com muita naturalidade que recentemente havia começado um tratamento com testosterona. Mas isso serviria para quê? Segundo ela, dois familiares mais velhos (um homem e uma mulher) estavam fazendo uso do hormônio para diminuir a fadiga e melhorar a libido. E como ela também não estava se sentindo muito bem após uma série de problemas de saúde, resolveu perguntar ao seu médico ginecologista: “‘e a testosterona?’. E ele respondeu: ‘pode usar, vai te ajudar um monte’. E acabamos nem conversando muito (…). Mas ele disse que a testosterona vai me dar um pouco de rumo, vai me clarear as ideias e vai me dar um pouco de estabilidade no geral.”

Esta simples conversa chama a atenção para alguns aspectos que têm se tornado comuns na nossa vida cotidiana e que vou chamar aqui de atração pela magia dos medicamentos e fascínio pelos hormônios. A magia dos medicamentos seria esta crença por parte de algumas pessoas de que os medicamentos poderiam ser soluções rápidas e eficientes para tratar problemas de vários tipos. Ou, dito de outra forma, seria a ideia de que praticamente qualquer problema que nos aflige nos tempos atuais poderia ser solucionado por meio de um remédio, com um comprimido mágico. Certamente, é óbvio que hoje somos muito beneficiados pelos desenvolvimentos científicos e médicos que nos garantem melhores condições de saúde e a prevenção de muitas doenças. De forma alguma, estou questionando isso aqui. O que discuto é como se tornou comum, talvez exatamente pelo sucesso dos medicamentos em muitos tratamentos, a percepção de que haveria um medicamento mágico para curar qualquer coisa. E, especialmente, problemas que seriam mal definidos, muito vagos, e que estariam relacionados com condições ou origens bem mais complexas e difíceis de resolver ou transformar. Paula enfrentava uma fase muito difícil em sua vida, estava com stress pós-traumático, após ter vivido um episódio de violência, e vários outros problemas. Mas lhe pareceu muito tranquilo acreditar que mais um remédio (ao lado de vários outros que já consumia) poderia ajudar a resolver a sua situação e devolver-lhe uma sensação de bem-estar. É esta imediatez na conexão entre a existência de problemas mal definidos e a crença em uma resolução farmacêutica que estou questionando aqui.

Já no que se refere ao fascínio pelos hormônios, a questão que aparece é como essas substâncias têm se tornado uma espécie de linguagem comum para falar das condições as mais diversas. Quando Paula simplesmente tocou no assunto com seu médico, ele rapidamente disse que a testosterona iria lhe ajudar muito, inclusive, dando rumo, clareando ideias, propiciando estabilidade. Isso apareceu também em entrevistas com vários médicos e médicas ginecologistas que defendiam os benefícios da testosterona, em especial na melhoria do desejo sexual. Mas, como isso seria possível? O mero acréscimo deste tipo de hormônio poderia fazer tudo isso na vida de alguém? Como paciente e médico podem considerar que isso seja realmente possível? Também parece algo um tanto mágico… Esta magia, neste caso específico, da testosterona está associada particularmente à história dos efeitos que lhe são atribuídos e ao fato de que foi primordialmente associada aos corpos masculinos.

Nessa direção, os hormônios parecerem funcionar como mensageiros que, muito além de substâncias químicas, transmitem informações reveladoras sobre nossa sociedade, no que se refere a gênero por exemplo. Podemos percebê-los como metáforas que nos ajudam a entender como certos valores vão sendo redefinidos ou reafirmados. Mais precisamente, o que estou argumentando é que necessitamos prestar mais atenção aos significados subjacentes às recorrentes referências à entidade “hormônio” como explicação ou evocação de tantas diferenças.  Se consideramos a contextualização desse tipo de explicação hormonal no contexto de uma referência histórica mais ampliada, percebemos que faz parte de um processo mais geral.

Como muitos estudos têm mostrado, é a partir do final do século XVIII e início do século XIX que o conhecimento científico, especialmente médico, vai se dedicar com afinco a definir as diferenças entre homens e mulheres concebendo-as como radicalmente inscritas na natureza que, por sua vez, seria concebida como imutável. Estas diferenças estariam presentes no desenho anatômico e na fisiologia e se espalhariam até o comportamento e mesmo atingiriam emoções e intelecto. Por meio da justificativa de que homens teriam cérebros maiores por exemplo, fundamentava-se a inadequação dos estudos para as mulheres. Percebe-se assim a promoção de uma justificativa biológica para os papéis sociais distintos a serem exercidos por homens e mulheres em virtude de uma organização corporal diferenciada.

Em torno da passagem para o século XX é possível notar que não se trata mais apenas de uma referência anatomofisiológica, porém de uma busca por explicações de ordem bioquímica, para fundamentar as diferenças de gênero. No caso das mulheres, todo o comportamento feminino passa a ser descrito em função dos ciclos e substâncias governados pelos órgãos reprodutivos, especialmente os ovários.  A mulher passa a ser “explicada” por fases como puberdade, gravidez, amamentação e menopausa e as substâncias produzidas pelos ovários passam a ditar a diferença em relação ao homem e às secreções dos testículos. Pode-se dizer que entra em curso uma nova precisão a respeito das diferenças que se pretendia conceber como naturais.

Até a década de 1920 predominou a noção de que os hormônios produzidos pelos ovários e pelos testículos seriam específicos, exclusivos de cada sexo e dotados de um papel único na determinação sexual. A presença de hormônios femininos só seria possível nas mulheres e determinaria as suas características sexuais. Da mesma forma, os hormônios masculinos seriam exclusivos dos homens e determinariam as características masculinas. A partir desta época, as experiências realizadas com animais passaram a mostrar a presença dos dois tipos de hormônios em machos e fêmeas. Embora se observassem nítidas “evidências” científicas, não houve uma transformação imediata na ciência. Os novos dados foram recebidos com muita resistência e incômodo e somente uma década depois foi possível aceitar uma nova relação entre hormônios e sexo. Na década seguinte ainda se descrevia com espanto as experiências nas quais se encontrava a presença de hormônios “femininos” em machos e, principalmente, com menos importância, se descrevia a presença de hormônios “masculinos” em fêmeas. Aos poucos passa-se a demonstrar uma diferença de ordem quantitativa na presença dos hormônios típicos de machos e fêmeas. Contudo, apesar de os cientistas reconhecerem a não exclusividade na origem e função dos hormônios, na clínica, os médicos, ginecologistas entre outros, continuaram promovendo um modelo do tipo dualista1,5.

O que percebemos nessa referência histórica é a força normativa que as concepções tradicionais de gênero tiveram no processo de definição dos hormônios sexuais. Ao longo do século passado e nas primeiras décadas do século XXI certamente temos assistido a grandes transformações na produção do conhecimento acerca dos chamados hormônios sexuais. Mas é curioso que apesar da comprovação da existência de diferentes tipos de hormônios, tanto em corpos descritos como masculinos como nos apresentados como femininos, continua sendo muito comum a premissa da exclusividade. E além disso, prossegue a noção de que hormônios de tipo masculino ou feminino impingiriam comportamentos diferenciados.

É com base nesta “tradição” que se pode entender melhor, mas de forma alguma justificar, como a testosterona pode ser rapidamente prescrita para dar rumo, estabilidade e melhorar a libido em mulheres. O que está por trás disso é uma concepção binária de corpos e de gêneros que atribui qualidades distintas aos seres humanos a partir de composições hormonais diferenciadas. Então, se Paula se queixa de problemas mais generalizados e de falta de libido, a testosterona, hormônio que encarna as qualidades como força, discernimento, potência, desejo, energia, tradicionalmente associadas ao masculino, poderia ser usada para beneficiá-la. Aqui é importante dizer que há sempre um cuidado dos médicos em reafirmar que os tratamentos com testosterona em mulheres precisam usar doses baixas que não provocariam efeitos masculinizantes. Porém, dentro desses limites, as doses consideradas adequadas poderiam ser usadas. Contudo, as indicações são ainda muito vagas e parecem se embasar, sobretudo, nessas associações simbólicas entre testosterona e masculinidade, sem discutir as origens dessas associações e se fariam algum sentido.

Apenas se reproduz o que parece ter se tornado uma linguagem para dar explicações simplistas. Há muito tempo “os hormônios” saíram dos consultórios médicos para se tornarem uma espécie de referência comum, que todo mundo entenderia. Quando se diz, por exemplo, “a culpa é dos hormônios”, parece que muitas pessoas tendem a concordar, não questionando o que isso quer dizer. Como se houvesse uma verdade última nos hormônios, como se eles fossem causas absolutas dos comportamentos ou das aflições das pessoas e, ao mesmo tempo, suas possibilidades de tratamento e cura. Não se trata aqui de negar a função dos hormônios, mas de provocar uma reflexão sobre como têm sido usados na nossa linguagem comum, cotidiana. E, ao mesmo tempo, de usar este fenômeno para pensar sobre como produzimos determinadas demandas de intervenção em nosso corpos e mentes, baseadas em expectativas de altas performances, de uma vida sem falhas que, certamente é muito difícil de ser alcançada, mesmo às custas de todos os medicamentos possíveis.

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Fabiola Rohden

Professora associada do Departamento de Antropologia e integrante do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Realiza pesquisas e assessorias nas áreas de relações de gênero, corpo, sexualidade, saúde, gênero e ciência, biotecnologias e história da medicina no Brasil. É líder do grupo de pesquisa "Ciências na vida: Produção de conhecimento e articulações heterogêneas"; e co-coordenadora da Rede de Investigações Biotecnologias, Saúde Pública e Ciências na Vida (UFRGS/UNIV. LISBOA/UNIV. BUENOS AIRES).