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“Viagra da alma”: Ocitocina e a bioquímica do amor

A manchete que abre a matéria da revista Glamour do ano de 2013, na seção Amor e Sexo, anuncia, em tom eufórico, a novidade do lançamento do medicamento “Oxytocin Factor”. Feito à base de ocitocina sintética, ele pode ser administrado tanto em forma de gotas sublinguais ou spray nasal, conforme a escolha da consumidora – embora não especifique, o alvo da matéria em questão parece ser as mulheres. Ainda de acordo com a matéria, “o amor já está à venda”, uma vez que o medicamento promete despertar a paixão e, segundo as informações da bula, “tornar o amor e os relacionamentos possíveis” (“The hormone that makes love and relationship possible”). A celebração da grande novidade no mercado é corroborada com o argumento do neurocientista norte-americano Larry Young sobre o caráter absolutamente químico da relação amorosa.

A pequena parte textual da matéria é entrecortada por duas grandes imagens que dizem muito. Na primeira, a imagem sensual de um casal jovem – com close no peito do rapaz, a mulher o abraça por trás e as mãos dela levantam sua camisa. A segunda imagem é do perfume “Molecule 01” (à base de feromônios), ao lado da foto do “Oxytocin Factor”, uma versão cosmética e outra medicamentosa de substâncias que prometem a vinculação sexual e amorosa entre casais.

Uma intepretação apressada pode concluir pela simples correspondência direta entre os interesses do mercado farmacêutico e a divulgação de notícias como essa. Porém tais matérias traduzem um movimento mais complexo de produção e mobilização de expectativas em relação às possibilidades de utilização de um medicamento para o incremento do vínculo amoroso. Essa constatação está em sintonia, por um lado, com o progressivo aumento de medicalização da sexualidade de homens e mulheres respaldado pelo advento e estrondoso sucesso de mercado dos medicamentos para disfunção erétil (a exemplo do Viagra, para os homens) e das projeções em torno dos novos recursos para o tratamento da disfunção sexual feminina (cuja aposta mais recente é a droga flibanserina, aprovada nos Estados Unidos em 2015 e denominada como o novo “pink Viagra”).

Além disso, tanto para homens quanto para mulheres, a testosterona, o “hormônio masculino” por excelência, passa a ser promovida para prevenir e tratar não apenas o desejo sexual, mas uma gama de condições genéricas como stress, falta de energia, cansaço e até envelhecimento. Apenas mais recentemente, nas matérias de divulgação cientifica em veículos de grande circulação, a testosterona vem dividindo as atenções com a ocitocina, tradicionalmente associada a processos fisiológicos femininos, no contexto do parto e da amamentação.

A valorização de um medicamento para aprimoramento das relações amorosas também aponta para um conjunto de ideias e valores que extrapolam o uso mais restrito de recursos farmacológicos para o tratamento de doenças em direção à sua aplicação ampliada para melhorar a performance em diversas dimensões da vida. Nessa nova lógica, o cuidado à saúde se orienta para o futuro (a partir da noção de prevenção dos riscos) e na ideia de que é possível estar sempre “melhor”, indefinidamente. Ser saudável se articula com noções imprecisas e de difícil alcance, como bem-estar e qualidade de vida.

Assim, a ocitocina é promovida como uma “solução” (no duplo sentido da palavra) milagrosa, que garante, através de um modo de administração bastante simples (como uma borrifada no nariz ou gotas sublinguais), o sucesso nas relações amorosas. Para além disso, mais recentemente, a proliferação de matérias em torno das chamadas “gotículas do amor” atualiza concepções sobre gênero, corpo e ciência sobre as quais é importante refletir. Como um simples hormônio pode despertar tanto alvoroço? Que noções de gênero, corpo e ciência a ocitocina performa e aciona?

Invisíveis a olho nu, porém, gigantes quando consideramos seu impacto na vida social, os hormônios vêm mobilizando uma complexa rede heterogênea formada por um conjunto de saberes especializados e leigos, através de uma literatura de divulgação cientifica. Mais do que uma simples transição para um novo foco de interesse, os discursos públicos em torno dos hormônios constituem hoje uma via privilegiada para explicação do funcionamento das emoções, identidades e comportamentos, os mais diversos, como os sexuais e amorosos. Observa-se na atualidade a configuração de um “corpo hormonal”, através do qual comportamentos, emoções, moléculas, substâncias e pessoas são mapeados, reconhecidos, traduzidos e medidos.

Através dessa nova gramática hormonal, a dinâmica da vida social é simplificada e reduzida para o plano molecular de um corpo eminentemente bioquímico regido por um mundo microscópico de moléculas em constante movimentação e interação com órgãos, glândulas e cérebro.

No mundo supostamente “desencantado” da ciência, a ocitocina, popularmente conhecida como o “hormônio do amor” ou “hormônio do prazer”, vem ganhando destaque em veículos de divulgação cientifica para o grande público, como a molécula que desvendará a bioquímica do amor.

O sentimento amoroso, que sempre resistiu em se decifrar e que, talvez por isso mesmo, tenha ocupado as narrativas de filósofos e poetas ao longo dos séculos, começa a povoar, sob esse novo registro, um campo “de autoajuda cientifica” no qual ciência, jornalismo, divulgação e autoajuda se misturam em diferentes veículos de comunicação destinado ao público mais amplo. Para além da divulgação de novas descobertas, o campo visa a promoção de novas normas de orientação de comportamento com base em argumentos apresentados como científicos.

A ocitocina é um hormônio produzido no hipotálamo que foi isolado e sintetizado pela primeira vez em 1952, por Vincent du Vigneaud, cujo feito rendeu-lhe o Prêmio Nobel de Química.

As primeiras explicações cientificas vinculavam sua ação à ativação de circuitos cerebrais responsáveis pelo vínculo afetivo entre mãe e bebê. Segundo tais explicações, a ocitocina produzida no hipotálamo é liberada na circulação periférica em resposta a estímulos fisiológicos como o contato do bebê na parede cervical no fim da gravidez e o sugar na amamentação. Após viajar pela corrente sanguínea, o hormônio se ligaria a receptores específicos nos tecidos do útero e glândula mamaria, contribuindo para os processos de parto e amamentação. As explicações cientificas em torno da ocitocina foram muito bem captadas pelo movimento pelo parto humanizado que reitera o protagonismo do hormônio, não só no sentido de facilitar o parto e a amamentação “naturais”, mas também na produção da sensação de satisfação no ato de parir e amamentar.

O protagonismo da ocitocina na promoção do vínculo ou da capacidade de amar atinge não só a relação entre mães e seus filhos recém-nascidos, mas também entre casais, nesse caso, notadamente heterossexuais.

As explicações em torno da sensação de prazer presentes no amor materno ou conjugal reforçam noções evolucionistas considerando a ideia de que o “sistema de gratificação” proporcionado pela ação da ocitocina, conjuntamente com outros hormônios, e que fazem parte da relação sexual, do ato de parir e amamentar, serve para o propósito de manutenção da espécie humana. De acordo com esse raciocínio, levado às últimas consequências em algumas notícias de divulgação cientifica em torno da ocitocina, se não fosse o mecanismo hormonal de satisfação, as condições para a reprodução e para criação dos filhos, no período de dependência absoluta dos pais, seriam inviáveis.

Mas não só de amor a ocitocina vem sendo investida. Nas últimas décadas, em diferentes veículos de comunicação como revistas, jornais, portais de notícias e sites de médicos, clínicas, laboratórios, e farmácias de manipulação, avolumam-se informações sobre a gama de benefícios da ocitocina, extrapolando o domínio de sua agência “para muito além do amor e do prazer”.

Estes veículos propagam um conjunto de vantagens da ocitocina de capacidades emocionais, sociais, sexuais e físicas, as mais diversas. Os aspectos emocionais e sociais vão desde a regulação e melhora de estados de humor tais como ansiedade, irritabilidade, estresse, depressão pós-parto; e passa pelo incremento de sentimentos de contentamento, calma, segurança/autoconfiança na relação com o parceiro, autoestima, reconhecimento da fisionomia de pessoas conhecidas e, até mesmo, a promoção da bondade entre as pessoas.

Entre os benefícios físicos aparecem a promoção da ejeção do leite materno, de contrações e expulsão do bebê no parto, alívio da dor, melhora dos distúrbios do sono, aumento da vasodilatação arterial e da massa muscular, aceleração e intensificação do orgasmo e do desejo sexual, emagrecimento, rejuvenescimento, apenas para citar alguns exemplos.

Esta ampliação dos usos da ocitocina está congruente com o alargamento da noção de saúde na lógica do aprimoramento, e, com ela, a possibilidade de medicalização de condições que, a princípio, poderiam ser consideradas como parte do curso normal da vida, como tristeza, timidez e envelhecimento.

As explicações sobre o funcionamento da ocitocina nesse campo de autoajuda cientifica são também reveladoras da maneira como a diferença de gênero – simplificada e reduzida por um discurso biologizante e molecular – é pensada. Essas descrições partem do pressuposto inquestionado da existência de dois corpos hormonais radicalmente opostos, porém complementares, sob os quais a ocitocina atua diferencialmente.

Focando apenas no par ocitocina/ testosterona – mas é preciso dizer que os outros hormônios corroboram essa lógica –, as mulheres e tudo que pode ser inscrito como “feminino” são descritos pela associação com a ocitocina, “naturalmente” presente em maior quantidade em seus organismos em função de seu papel no parto, na amamentação, e, portanto, segundo esses discursos, na reprodução da espécie. Já os homens seriam caracterizados pela produção de testosterona. Ao lado da ocitocina, temos uma cadeia, sempre primordialmente associada às mulheres, que articula termos como amor, acolhimento, proximidade, empatia, calma, tranquilidade, reconhecimento de familiares e formação de vínculos duradouros. Enquanto isso, a testosterona, primordialmente atribuída aos homens, é apresentada pela associação com paixão, desejo, potência, agressividade, infidelidade, entre outros termos.

No caso da ocitocina, há uma tendência em associar sua ação no sentido da “feminização” e “masculinização” de corpos masculinos e femininos, respectivamente. É possível, portanto, constatar nesses discursos que a ocitocina desperta, por assim dizer, comportamentos pouco esperados “naturalmente” para homens e mulheres. Para os primeiros, ela atua “acalmando” os homens, mediante o controle (mas não apagamento) de sua agressividade, atributo visto como natural do homem. Ao mesmo tempo, a mesma substância promove o aumento da libido feminina. Esta possibilidade se alinha a uma visão bastante presente no senso comum, segundo a qual as mulheres, diferentemente dos homens, estariam menos disponíveis para o sexo e mais voltadas para o amor e à manutenção de laços de fidelidade.

Os discursos nesse campo da autoajuda cientifica naturalizam a relação entre amor e sexo como atributos opostos e complementares, e naturalmente associados a uma suposta disposição físico-moral inata de mulheres e homens, respectivamente. Nesse aspecto, em sua apresentação artificial, a ocitocina age justamente suprindo a atividade “naturalmente” diminuída do sexo para mulheres e da capacidade de amar e de ser fiel dos homens. Assim, em última instância ela promete a promoção da durabilidade e da estabilidade da relação conjugal heterossexual.

A possibilidade de administração de hormônios como a ocitocina em homens e a testosterona em mulheres podem indicar, à primeira vista, certo borramento das fronteiras entre os sexos. Da mesma forma, a explicação dos relacionamentos em termos tão moleculares pode dar a ilusão de uma percepção menos assimétrica em termos de gênero. Contudo, se considerarmos mais atentamente o conteúdo das matérias sobre ocitocina nas últimas décadas, é possível perceber com nitidez a manutenção da ênfase nas diferenças entre homens e mulheres concebidas como inatas e constitutivas da própria “natureza” feminina e masculina.

A despeito das mudanças na maneira de descrever os processos biológicos, na linguagem bioquímica do amor, ainda pesa a narrativa cultural dominante de biologização das diferenças e assimetrias entre homens e mulheres a partir da norma heterossexual.

Embora seja concebível um acréscimo externo de hormônio para melhorar a performance de homens e mulheres e suas relações amorosas, no que diz respeito ao que define a existência de cada um, continua sendo privilegiado, no contexto da promoção de ideias em torno dos hormônios, aquilo que é compreendido como uma diferença inata, original e de cuja manutenção depende inclusive, de acordo com a retórica geral das notícias, a reprodução da espécie.

Referências

Créditos de imagem

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Fernanda Vecchi Alzuguir

Psicóloga, professora adjunta do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) na Área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Mestre e Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). Interesse nas discussões sobre gênero, ciência, sexualidade, reprodução e corpo, a partir dos estudos feministas da ciência. Atualmente, investiga o tema das novas tecnologias de reprodução assistida e concepções sobre envelhecimento a partir do gênero, no pós-doutorado (PPGAS/UFRGS).